segunda-feira, 24 de maio de 2021

MULHERES NA HISTÓRIA DO GRAFFITI DESDE O BRONX AO BRASIL

 Por Ana Honorio


O desenvolvimento da subcultura do graffiti no mundo se deu no contexto de emergência da contracultura nos anos 60. Em Paris, nos movimentos do Maio de 68 estudantes e operários denunciavam o conservadorismo da época e a repressão do governo. Nos Estados Unidos o graffiti se consagrou nos guetos do Bronx como um dos quatro elementos da cultura Hip Hop, tendo sido utilizado nas lutas pelos direitos. Em toda a América Latina num período em que Ditaduras Militares assolavam os países do subcontinente, expressões começam a surgir nos muros como gritos contra a repressão, o militarismo e as violências da ditatura. (COSTA JUNIOR; PORTINARI, 2014)
Nos guetos do Bronx, periferia de Nova York a juventude negra e latina iniciou um hábito de escrever seus nomes (tags) em diversas superfícies da cidade. Das mulheres precursoras dessa cena na década de 1970 são Barbara 62 e Eva 62 que foram as criadoras do contorno sub, hoje considerado uma das técnicas básicas do graffiti. Outra mulher lendária é Lady Pink, considerada a primeira-dama do graffiti, essa artista equatoro-americana que está em atividade ainda nos dias de hoje teve um papel importante na transformação do graffiti para artes plásticas e sua inserção nas galerias de arte. Pink em 1980 pintou seu primeiro trem, nesse período o prefeito de New York determinou que as pessoas que fossem flagradas pintando, deveriam ser capturadas e encaminhadas à delegacia para serem penalizadas pelo crime de vandalismo contra o patrimônio público.
 Essas mulheres demonstraram atitude de coragem para se legitimar dentro da cena onde os grafiteiros as subestimavam, enquanto enfrentavam o perigo de serem presas pela polícia, sem contar o risco de serem estupradas nas violentas ruas. Rose (1994) num estudo sobre a presença de mulheres no graffiti em Nova York mostra os aspectos que as diferenciam dos homens. As temáticas risco e reputação (artística e moral) estão presentes nas falas das grafiteiras. As mulheres, assim, além do risco inerente à prática do graffiti, ainda têm o desafio de lutar contra o sexismo de seus colegas homens para serem legitimadas na cena.
O graffiti chegou ao Brasil na década de 1970, articulado com os outros elementos da cultura Hip Hop. No entanto, até os anos 2000 o movimento não consagrou nenhuma mulher expoente. De acordo com Leite (2013) dos 25 nomes da primeira geração do graffiti no Brasil apenas dois eram de mulheres: Marcia Chicaoka e Carmem Fukunari que integram o Tupinãodá (primeiro grupo de graffiti do Brasil). Essas mulheres brancas de classe média e acadêmicas não deixaram seguidoras.
Ao final da década de 1990 as mulheres começam a se organizar coletivamente. São as primeiras articulações da rede GrafiteirasBR, primeiro grupo de grafiteiras formado oficialmente em 2004 na cidade de São Paulo. Nenê Surreal e Meduza são precursoras entre as mulheres do graffiti na década de 1980. É atribuída à Renata Santos (Meduza) a criação do estilo de letras tipicamente brasileiras conhecida como Grapixo.
Desde os anos 2000 o numero de mulheres grafiteiras aumentou substancialmente. As  mulheres brasileiras ao ocupar a cena do graffiti trouxeram uma nova pedagogia para o movimento estabelecendo elementos colaborativos para a ascensão coletiva de outras mulheres na cena do hip hop e da arte urbana. Atualmente são incontáveis números de Crews (grupos) de grafiteiras, de eventos produzidos por e para mulheres em todo o país. A internet teve um papel crucial para a articulação das mulheres espalhadas por todo o Brasil.
No início dos anos 2000 articulações no Yahoo Groups levaram a um primeiro encontro em 2004 e depois no Fórum Social Mundial em 2005, na cidade de Porto Alegre. Em agosto de 2012 a grafiteira Crica (Cristiane Monteiro) criou o grupo Graffiti Mulher Cultura de Rua num período em que as mulheres estavam perdendo o vínculo em nível nacional. Esse grupo atualmente reúne quase mil mulheres que pintam em todo o Brasil.
A partir dos anos 2000 a evolução da cena cultural do graffiti feminino no Brasil é notória. Mesmo com todas as dificuldades enfrentadas, atualmente contamos com diversas redes, crews e eventos de mulheres articulados em nível nacional. Muitas mulheres conquistaram espaços para além das ruas se legitimando como agentes produtoras da cultura, arte-educadoras, pesquisadoras e empreendedoras.
As mulheres na cena do graffiti questionam o lugar comum destinados a elas na cidade subvertendo a lógica da produção de cultura historicamente dominada por homens.

domingo, 23 de maio de 2021

MULHERES NO GRAFFITI: TERRITORIALIDADES MÚLTIPLAS NO ESPAÇO URBANO


por Ana Honorio

O conceito de território envolve noções que perpassam os âmbitos político, econômico e cultural. Tendo o poder como elemento central de análise, podemos pensar o território no sentido concreto e material – de dominação, e no sentido simbólico – de apropriação. Nessa abordagem culturalista do território urbano articulamos algumas categorias para análise (como gênero, estética, classe e raça) a fim de entendermos as múltiplas faces das territorialidades do graffiti feminino no espaço urbano. Territorialidade, portanto, é um conceito fundamental para entendermos as ações, organizações e a tomada de poder na cidade por mulheres no graffiti. 

O graffiti é uma forma artística e visual de expressão que atua na disputa simbólica, política e estética de uma cidade. Ao aprofundarmos na história contemporânea dessa cultura vemos que a participação feminina na cena foi subestimada pelos garotos do graffiti e, além do mais, os aparatos de repressão do estado atuam para cercear e criminalizar a prática do graffiti. De modo, podemos afirmar que a mulher grafiteira sofre opressões dentro e fora da cultura, a territorialidade feminina atua, portanto, em duas dimensões: a primeira é a disputa por espaços no interior da cena do graffiti e a segunda é a apropriação de espaços na cidade historicamente negados às mulheres periféricas. As grafiteiras ao se impor na cidade se contrapõem com a imagem hegemônica que a estrutura patriarcal, racista e classista impõe sobre o corpo feminino.

Historicamente na América Latina houve clara distinção do grupo letrado que se dedicavam às obras literárias como desenhistas de modelos culturais, destinados à constituição de ideologias públicas, enquanto que a mulher negra e indígena eram escravizadas e violentadas de diversas maneiras (Rama, 1985). Assim uma mulher periférica nos dias de hoje fazendo arte (coisa que era destinada apenas aos homens livres e letrados) e ocupando o espaço urbano enfrentando todos os riscos é um ato de empoderamento e representação em territórios historicamente negados a elas.

Simbolicamente, a presença da mulher periférica ocupando os muros da cidade é um rompimento com o projeto colonizador da América Latina que pautou em escravizar-las e submete-las ao espaço doméstico. O simples ato de grafar o seu nome no muro representa não só “estratégias de reconquista da cidade e sua paisagem, mas um reposicionamento estratégico sobre o imaginário urbano escrito com nome de mulher.” (TORRES, 2019 p. 6). Grafitar, portanto é uma atitude ao trazer visibilidade e representatividade para as mulheres oportuniza o rompe com o discurso e estética androcentrados da cidade.

A visibilidade, para além do espectro visível, é uma disputa política e simbólica nos espaços públicos e privados, por direitos e representatividade de pessoas ocultadas da visualidade urbana: “A disputa pela visibilidade na paisagem urbana estabelece uma tensão

permanente entre os sujeitos que buscam seu reconhecimento, por vezes, ocultados por regimes de visibilidade que definem os padrões estéticos norteadores do ordenamento das cidades” (TARTAGLIA, 2015, p. 129).

As territorialidades visuais dos graffitis femininos configuram nas paisagens urbanas territórios de sentidos contra-hegemônicos do ser mulher na cidade expressando uma gramática de vozes marginalizadas e transgressoras da realidade imposta às mulheres.

Ao analisarmos a história das mulheres do graffiti vemos que, apesar de toda subjulgação dentro e fora da cena, as grafiteiras participaram ativamente do processo de evolução da cultura e estética do graffiti. Se nos primórdios da cena as mulheres eram iniciadas por ser a namorada do grafiteiro e vistas como eternas aprendizes, atualmente as elas conquistaram um espaço que transcendeu a cena do graffiti, ocupando do underground ao mainstream ocupando galerias de arte, escolas, universidades, livros e muros.

A evolução da cena no Brasil especificamente ganhou relevância a partir dos anos 2000 quando começou a se formar redes e grupos de grafiteiras. A organização coletiva de mulheres no graffiti oportunizou a conexão de mulheres espalhadas pelo Brasil inteiro.

Assim, entendendo que a manifestação estética do graffiti intersecsiona territorialidades simbólicas e materiais, podemos afirmar que a presença feminina no graffiti engendra multiterritorialidades, pois envolve uma trama complexa de ações e organizações envolvendo indentidade, estética e cultura e a reapropriação dos espaços de poder na cidade.

A partir de seus elementos estéticos o graffiti contemporâneo oportuniza a iniciação de muitas meninas no campo das artes plásticas e, para além disso, é por meio dessas grafias que as mulheres territorializam a sua voz demarcando seu espaço na cidade, fazendo da superfície urbana um lócus de afirmação identitária e contestação política na busca de direitos coletivos