domingo, 27 de setembro de 2015

A diferença de Limite e Fronteira.

É importante destacar dois significados ou campos de referência diferentes assumidos no uso atual da expressão “limite”. Geralmente, em ambos os casos, a noção de limite carrega consigo algo do campo semântico no qual residem também os significados de extremidade, de descontinuidade e de término. Primeiramente, o uso do termo serve para referenciar mais diretamente uma marcação ou uma linha que resultam numa determinada configuração espacial, a partir da qual uma área, região ou território ganham seus contornos. Essa forma de emprego reforça os significados originais da palavra. “A palavra limite, de origem latina, foi criada para designar o fim daquilo que mantém coesa uma unidade político-territorial” (Machado, 1998). Nesse caso, circunscreve-se o lugar, a região ou o território e este ganha suas definições, ou mais especificamente seus limites, no contato com o exterior. É nesse sentido que a palavra assume um conteúdo propriamente espacial e passa a fazer parte do vocabulário dos geógrafos, militares e estadistas preocupados com a definição e edificação da soberania.
8Num outro universo de significação, a noção de limite pode ser aplicada para expressar a exaustão, a impossibilidade e o fim de um processo ou atividade. Remetendo-se mais especificamente, nesse caso, ao funcionamento de um corpo social ou natural no tempo, o uso da noção de limite faz referência à duração. Remetendo-se a suas próprias possibilidades intrínsecas, o uso da expressão limite aparece ligada mais ao funcionamento lógico. Dessa forma, a palavra limite também demarca sincronicamente o ponto exato de sua morte – morte no tempo – ou a impossibilidade estrutural do prosseguimento de determinada conjunção.
9De qualquer forma, em ambas as possibilidades de emprego da palavra limite, ela se volta para o interior do corpo ao qual faz menção. O limite diz respeito ao conjunto cercado entre os contornos que se remetem a uma identidade interna, e portanto ele é voltado para dentro, seja em relação ao território ou às possibilidades de definição e continuidade de determinado arranjo social – do que se entende por capitalismo, por exemplo. Ele não faz menção ao que “não é”, mas somente ao que termina ou encontra o seu fim num determinado ponto ou linha – no espaço, no tempo ou a partir de uma configuração interna (lógica).
10Diferente, no entanto, é o sentido que foi atribuído à noção de fronteira. “A fronteira está orientada ‘para fora’ (forças centrífugas), enquanto os limites estão orientados ‘para dentro’ (forças centrípetas)” (Machado, 1998). O sentido mais forte do termo, entretanto, e o campo no qual essa discussão assumiu um contorno conceitual mais preciso, seja no campo jurídico ou no da ciência geográfica, se remete às categorias espaciais e, mais especificamente, à fenômenos e definições que ganham existência no território. Isso se deveu em grande medida ao comportamento, à dinâmica e ao modus operandiinseparáveis do Estado territorial moderno. Nesse sentido, segundo Lia Osório Machado,
11“A gênese da noção de ‘fronteira’ é diferente e muito mais antiga daquela de limite internacional. A literatura considera o Império Romano e o Império da China como casos paradigmáticos na investigação das origens da concepção de fronteira e da evolução de seu significado no tempo. Os romanos, por exemplo, não tinham interesse em estabelecer limites aos seus domínios; no entanto, criaram um sistema administrativo e defensivo de fronteira (período dos Augustos), primordialmente para dificultar a expansão dos povos bárbaros nas fímbrias do Império” (Machado, sem data).
12Stephen Jones aponta com clareza para uma dinâmica, própria da fronteira, que se desenha em contraposição ao imobilismo sugerido pelos limites, tais como são concebidos atualmente pelo moderno sistema interestatal (ver Arrighi, 1996; e Machado, sem data). A confusão recorrente entre limites e fronteiras guarda armadilhas para o pensamento, nem sempre visíveis. A legalidade, presente na concepção atual de “limite”, a qual recorre o Estado e o moderno sistema interestatal para a definição territorial dos poderes concorrentes, foi extraída da esfera privada de regulação da propriedade, mais especificamente do Direito Civil romano. “A ager publicus ou domínio público não tinha limites; terminava em algum lugar mas o fim não era especificado por nenhuma linha legalmente relevante (a expressão usada era fines esse)” (Machado, sem data). Em sua concepção atual, disseminada pelo uso do léxico estatal-legalista, “o limite não está ligado à presença de gente, sendo uma abstração, generalizada na lei nacional” (Machado, 1998). A indefinição legal da situação de “fronteira”, em contrapartida, implica frequentemente num tipo de mobilidade congênita, contrariando as tendências imobilizadoras impostas pelo limite. Nesse sentido, o caráter extrovertido da situação de fronteira sugere uma ampliação das possibilidades, uma tendência à expansão (do corpo lógico, social ou ecológico) que ignora as definições impostas pelos limites internos, muitas vezes ultrapassando e desrespeitando as definições legais dos poderes jurídicos e regulamentadores do Estado, justamente enquanto a conformação introvertida do limite sugere a restrição e o contorno do universo em questão.
13“A palavra fronteira implica, historicamente, aquilo que sua etimologia sugere – o que está na frente. A origem histórica da palavra mostra que seu uso não estava associado a nenhum conceito legal e que não era um conceito essencialmente político ou intelectual. Nasceu como um fenômeno da vida social espontânea, indicando a margem do mundo habitado. Na medida que os padrões de civilização foram se desenvolvendo acima do nível de subsistência, as fronteiras entre ecúmenos tornaram-se lugares de comunicação e, por conseguinte, adquiriram um caráter político. Mesmo assim, não tinha a conotação de uma área ou zona que marcasse o limite definido ou fim de uma unidade política. Na realidade, o sentido de fronteira era não de fim mas do começo do Estado, o lugar para onde ele tendia a se expandir” (Machado, 1998).
14Nesse sentido a fronteira faz referência também ao que é externo, ao contrário do limite, que permanece voltado para o seu interior. Ela se projeta como zona de comunicação e incorporação mútua entre o mundo externo e o interior, mas, simultaneamente, dá ganho de causa ao segundo sobre o primeiro, representadas aí todas as forças expansionistas das sociedades dinâmicas de fronteira.
SANTOS, C. R. Sobre limites e fronteiras: a reprodutibilidade do estoque territorial para fins da acumulação capitalista. Revista consfins, São Paulo, n. 12, 2011.